27 outubro 2011

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Novos padrões para o nascer
 SYLVIA MIGUEL

Com participação da USP, pesquisa nacional sobre parto e nascimento questiona o uso indiscriminado da cesariana e alerta para seus efeitos nas mães e nos recém-nascidos

No Brasil, um dos principais argumentos utilizados a favor da cesariana e da episiotomia de rotina é que o parto vaginal provoca flacidez dos músculos, comprometendo a atratividade sexual das mulheres. O excesso de estimativa de risco fetal ou a dor materna também desencadeiam a demanda por cesariana. Mas também os horários e conveniência dos médicos, especialmente no setor privado, colaboram para a prática indiscriminada da cesariana. No setor público, um argumento usado especialmente na década de 1990 é que a cesariana aliviaria a lotação de leitos.

Um grande retrato da assistência em saúde no Brasil vem sendo produzido por um consórcio de instituições de pesquisa e ensino e revelará em breve a magnitude das intervenções rotineiras desnecessárias relacionadas ao nascer. Trata-se da pesquisa Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento, coordenada pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), com participação da USP e outras instituições de pesquisa e ensino do País. Ela pode ser conhecida em detalhes no site www.ensp.fiocruz.br/nascernobrasil.

Segundo a pesquisa, as práticas intervencionistas durante o parto ganharam terreno especialmente após a década de 1950, com a adoção da tecnologia como forma de acelerar, regular e monitorar o processo de nascimentos no Brasil. Com isso, estabeleceu-se um padrão, uma espécie de “linha de montagem” para nascimentos que, além dos procedimentos citados, disseminou o uso da ocitocina e outros medicamentos para induzir o trabalho de parto, a adoção da posição deitada para a parturiente, o uso de rotina do fórceps em hospitais-escola e a “manobra de Kristeller” (empurrar a barriga para forçar a saída do bebê).
Mesmo comprovado que tais práticas rotineiras, além de obsoletas, não constituem bom exercício da obstetrícia, a maioria dos obstetras não consegue abandoná-las, justamente porque constituem práticas que lhes foram passadas nos bancos universitários.

Do ponto de vista das pacientes, parece que as únicas opções possíveis, pelo menos no sistema público e privado de saúde brasileiro, seriam a escolha do “corte por cima” (a cesariana), ou do “corte por baixo” (a episiotomia).

A grande maioria das mulheres se submete a tais procedimentos por conta das informações deformadas que recebem dos próprios médicos, acreditando que esse ou aquele medicamento, essa ou aquela prática protegerão seu bebê. Ou seja, as parturientes assumem que o “médico está fazendo a coisa certa”.
Ainda pesa na falta de opções o fato de que a episiotomia é um dos poucos procedimentos cirúrgicos realizados sem qualquer consentimento prévio da paciente. Os médicos a realizam como “procedimento de rotina”. É bom ressaltar que o uso dessas tecnologias podem, comprovadamente, prevenir e reduzir danos à mãe e ao bebê, mas em casos muito específicos. A episiotomia seletiva, por exemplo, ou seja, aquela com indicação específica, traz maiores benefícios que o uso rotineiro, sendo indicada em situações de sofrimento fetal, quando existe ameaça de laceração perineal grave, quando o feto está em apresentação pélvica (virado), ou ainda quando há progressão insuficiente do parto.
 
No setor privado, onde 30% das mulheres dão à luz, a cesariana é realizada em mais de dois terços dos partos. A episiotomia em mulheres que dão à luz por via vaginal atinge a taxa de 94,2%, sendo 70% delas no serviço público, de acordo com dados da professora Carmen Simone Grilo Diniz, do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.

A sociedade e, principalmente, as brasileiras, nunca discutiram profundamente as consequências na saúde das parturientes e dos bebês e nem sequer foi feita, até hoje, uma conta dos custos hospitalares relativos aos procedimentos cirúrgicos desnecessários nas práticas obstétricas. O que existe atualmente nesse sentido no Brasil são movimentos e debates em torno da Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa).
 
Motivações – Felizmente, pela primeira vez, o Brasil poderá fazer essa conta, ou seja, saber se, em se tratando de saúde pública, de fato se justifica a profusão de tantos procedimentos obstétricos sem indicação precisa. A pesquisa Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento permitirá conhecer a magnitude e os efeitos de intervenções desnecessárias como a cesariana em puérperas e recém-nascidos. Também será possível descrever a motivação das mulheres para a opção pelo tipo de parto e as complicações médicas durante o período do puerpério.

A Faculdade de Saúde pública (FSP) da USP, através do Departamento de Saúde Materno-Infantil, sedia a coleta de dados em São Paulo. “A pesquisa se iniciou em fevereiro de 2011 e deve ser finalizada em dezembro próximo”, afirma a coordenadora da coleta estadual dos dados, professora Camila Schneck, da Escola de Artes e Humanidades (EACH) da USP.

O edital convocado em 2009 pelo CNPq foi “provocado” por anseios de organizações civis e movimentos nacionais a favor da humanização dos partos no Brasil e contra a mutilação genital feminina, segundo a professora Carmen Simone Grilo Diniz (FSP), coautora da pesquisa.

Simone também coordena e monitora a coleta de dados da região Sudeste. O inquérito epidemiológico tem a professora Maria do Carmo Leal, da Fiocruz, como coordenadora-geral.

“A pesquisa traz inovações nunca estudadas em âmbito nacional. Conheceremos a magnitude da cesariana e de outras intervenções desnecessárias. Mas também poderemos relacionar os efeitos de gravidade pós-natal em mães e bebês decorrentes dessas intervenções, como também os efeitos de procedimentos ‘invisíveis’ no prontuário, como a manobra de Kristeller, por exemplo”, afirma Simone.

A amplitude das informações será possível graças à metodologia, que cruza a investigação de prontuários hospitalares com entrevistas de puérperas face a face no pós-parto imediato e por telefone 45 a 60 dias após o parto. Foram selecionados estabelecimentos de saúde nas cinco macrorregiões. Todos os Estados da federação participam, perfazendo um total de 23.580 pares de puérperas e conceptos.

Camila Schneck, da EACH, e Carmen Diniz, da Faculdade de Saúde Pública:
um retrato fiel da realidade brasileira no que se refere ao parto

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